Eduardo Pastore*
Recentemente, técnicos do Ministério do Trabalho anunciaram que se valerão da mediana como metodologia e referência para identificar se as empresas com mais de 100 empregados estão praticando discriminação salarial entre homens e mulheres, de acordo com a Lei 14.611/23.
A mediana salarial é uma medida estatística que representa o valor central de um conjunto de salários. Para encontrá-la, ordenam-se os salários do menor para o maior. A mediana é o valor que divide esse conjunto em duas partes iguais, ou seja, metade dos salários é inferior à mediana, e a outra metade é superior. Apesar de ser um método estatístico válido, apresenta problemas que podem distorcer seu resultado final, possibilitando a aplicação injusta de multas pelo Auditor Fiscal do Trabalho.
Não se pode negar que a discriminação salarial de gênero deve ser combatida, pois, inequivocadamente, existe. No entanto, todo cuidado é pouco quando isso for feito valendo-se somente da mediana.
Quais são as dificuldades de identificar discriminação salarial utilizando-se apenas da mediana?
1- Influência de outliers: Outliers são valores extremamente altos ou baixos que diferem significativamente dos outros dados e influenciam na composição salarial. Os salários podem variar amplamente dentro de uma empresa, com alguns trabalhadores, homens e mulheres, ganhando significativamente mais do que outros, sem que isso signifique necessariamente discriminação salarial, embora a mediana sofra menos influência dos outliers do que a média salarial.
2- Não capta a amplitude da disparidade: A mediana oferece um ponto de dados central, mas não informa sobre a amplitude da distribuição salarial dentro de cada grupo. Isso significa que, mesmo se as medianas forem iguais ou próximas, ainda pode haver grande disparidade nos extremos da distribuição (tanto nos salários mais baixos quanto nos mais altos). Essa deficiência pode gerar resultados distorcidos na captura de dados pela mediana.
3- Ignora a estrutura da força de trabalho: A mediana não leva em consideração a composição da força de trabalho nos diferentes níveis salariais, que são muitos, principalmente em grandes corporações. Por exemplo, se a maioria das mulheres estiver em cargos de nível inferior, e a maioria dos homens, em cargos de nível superior, a comparação das medianas pode mascarar a discriminação existente dentro dos próprios níveis, o que não significa, necessariamente, ato discriminatório de salário por parte do empregador.
4- Não considera fatores de diferenciação: A mediana salarial não captura fatores importantes que podem influenciar a composição dos salários, como, por exemplo, experiência de trabalho, educação, senioridade, qualificação, responsabilidade, desempenho pessoal, complexidade da função e de outros fatores. Sem ajustar esses fatores, não é possível determinar se as diferenças salariais são devidas à discriminação ou a diferenças legítimas nos atributos dos trabalhadores.
5- Falta de detalhamento nas distribuições: A mediana não revela detalhes sobre a distribuição dos salários além do ponto médio. Isso significa dizer que não é possível identificar, por exemplo, se há uma concentração maior de mulheres nos salários mais baixos ou se a dispersão salarial é semelhante entre os gêneros, nem quando a mobilidade salarial decorre da meritocracia, por exemplo.
6- Sensibilidade a mudanças na composição dos grupos: Embora a mediana seja menos sensível a outliers do que a média, ela ainda pode ser afetada por mudanças na composição dos grupos comparados. Por exemplo, um aumento no número de mulheres em cargos altamente remunerados pode elevar a mediana salarial feminina sem necessariamente indicar melhorias para a maioria das mulheres.
7- Dificuldade em identificar discriminação sutil: A mediana, por ser uma medida de tendência central, pode não captar formas mais sutis de discriminação, como diferenças nas oportunidades de promoção, avaliações de desempenho tendenciosas ou acesso desigual a benefícios e bônus.
Para superar essas limitações, é essencial combinar a análise da mediana com outras abordagens estatísticas, como a análise da média, a comparação de distribuições salariais completas, a aplicação de modelos de regressão que ajustam para variáveis relevantes, e a realização de análises desagregadas por cargo, setor e outras categorias relevantes. Essa abordagem multifacetada pode proporcionar uma compreensão mais abrangente e precisa da discriminação salarial entre homens e mulheres.
De acordo com Claudia Goldin, ganhadora do Nobel de Economia em 2023 por seus estudos sobre mulheres no mercado de trabalho, as diferenças salariais de gênero, entre homens e mulheres, não estão, necessariamente, relacionadas com a discriminação. Resumindo: nem tudo é fruto de discriminação. Há que se ter muita cautela nestas análises.
Portanto, a proposta de identificar possível discriminação salarial valendo-se tão somente da mediana, pode gerar distorções em seu resultado final, não relacionadas necessariamente com atos de discriminação salarial do empregador. Se redundarem em multas, passivos trabalhistas serão consolidados, decorrente de ações trabalhistas individuais e coletivas – ações civis públicas, bem como inexorável dano à imagem e reputacional do empreendimento. E, o mais importante e triste, não ajudar no combate à discriminação salarial de gênero, desejada pela Lei 14.611/2023.
Espero estar errado na minha análise.
Escrito por José Eduardo Gibello Pastore
Sócio da Pastore Advogados, é mestre em Direito das Relações Sociais pela PUC-SP e advogado trabalhista.